Luiz Eduardo Costa
Luiz Eduardo Costa, é jornalista, escritor, ambientalista, membro da Academia Sergipana de Letras e da Academia Maçônica de Letras e Ciências.
DA SUDENE AO NORDESTE DOS TEMPOS DA CÓLERA
19/11/2019
DA SUDENE AO NORDESTE DOS TEMPOS DA CÓLERA

(Nordeste? Rhummmm...)

Não vamos parodiar o escritor Garcia Marques, aquele que escreveu “O Amor nos Tempos do Cólera”. Nenhuma referência ao “cólera morbus”, horrível epidemia que se julgava extinta no Brasil,  e reapareceu, faz pouco tempo.

O que enfocamos é a cólera, sinônimo de raiva intensa, prelúdio sinistro de tragédias.    Tratamos da política, que desgraçadamente foi contaminada por um sentimento idêntico à irracionalidade selvagem da cólera.

O nordeste, com seus 55 milhões de habitantes é o segundo conglomerado humano deste país que anda pela casa dos 210 milhões. A nossa região é superada apenas pelo sudeste, que vai aos 85 milhões. Mas, quando se compara a renda per capita, o nordeste despenca.  Antes da crise que não foi somente uma “marolinha”, crescíamos a taxas superiores às das outras regiões.

As causas da discriminação que de fato existe em relação ao nordeste, perdem-se na história, e em boa parte resultam de uma imagem construída pelas nossas elites, apegadas àquela boçalidade arrogante e reacionária, característica do coronelismo.

O martírio secular das secas, a partir dos anos quarenta, com a abertura de rodovias, encheu as capitais nordestinas de retirantes, e fez refluir para São Paulo hordas de infelizes transportados nos paus de arara, os caminhões que ficaram a simbolizar a nossa desdita regional. Do Império, nos restou o crédito podre de uma dívida nunca honrada pelo Imperador Pedro II, que prometeu vender até a última joia da Coroa desde que chegasse ao fim o sofrimento do nordestino.

Criou-se aquela expressão “indústria das secas” forjada pela imprensa da capital federal para estigmatizar o nordeste, destinatário de gordas verbas enviadas à região e desviadas pelos seus políticos desonestos e insensíveis. Havia algum conteúdo verídico na afirmação depreciativa, todavia injusta, porque não abrangia as outras “indústrias” de privilégios, que a República mantinha sem causar maiores alardes.

Houve governantes que tiveram olhares conscientes para o nordeste. O maior deles, um mineiro, Juscelino Kubitscheck, o segundo, um pernambucano, Lula.

JK criou a Operação Nordeste na emergência de uma longa estiagem, e dela nasceu a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste, a SUDENE, para planejar o futuro, superar os entraves do clima, e abrir caminhos visando à superação da pobreza que nos castigava.

Convocado por JK mas acusado de ser esquerdista, e estar a serviço do comunismo internacional, o economista e pensador Celso Furtado reuniu uma brilhante equipe, fez o diagnóstico dos nossos males, e  lançou projetos que entusiasmaram o visionário Juscelino, o maior brasileiro do século XX.

O que Furtado propunha: Um choque de modernização capitalista, tendo o Estado como indutor.

Era uma receita que parecia simples, atraindo investidores estimulados por generosos incentivos fiscais, para que instalassem indústrias, preferencialmente, aproveitando insumos da região, e a eles agregando valor, ao mesmo tempo, buscando atualizar as indústrias tradicionais da região: usinas de açúcar, tecelagens, óleos vegetais, alimentos. Os Distritos Industriais urbanos que foram surgindo, levavam alento ao meio rural, sufocado pela baixíssima produtividade do latifúndio, e, paralelamente, rompiam a letargia da estrutura agrária, posse exclusiva de uma “aristocracia” da terra, madorrando nas redes das Casas Grandes, e olhando saudosista em volta, sem enxergar escravos. 

Eram tempos de polarização ideológica, os dois colossos adversários, capitalismo e comunismo, apontavam seus misseis com ogivas nucleares em duas direções contrárias, evitando dispará-los com medo do apocalipse. A “guerra fria” esquentava  pelo terceiro mundo, os países subdesenvolvidos, onde a miséria favorecia a radicalidade das  revoluções populares.

De Pernambuco espalhavam-se pelo nordeste as Ligas Camponesas, os combatentes esfarrapados do líder Francisco Julião, que criou a sua primeira experiencia de terra coletivizada no Engenho Galileia. Julião entrava em choque com os comunistas da “linha de Moscou”, que o achavam contaminado pela “doença infantil do esquerdismo no comunismo”, e como tal, possivelmente até um agente do “imperialismo americano”. Essas discussões davam o tom aos diálogos, num inócuo debate, sobre qual o “santo” que se colocaria no andor da “Revolução Brasileira”.

São Paulo, centro industrial, começava a antever os benefícios de um elo com o parque industrial nordestino, a ampliação da renda regional e expansão do mercado consumidor.

Celso Furtado, repelido pela elite nordestina, fazia conferencias para plateias na FIESP. Mas o ranço reacionário era muito forte, e a SUDENE quase sucumbe pela pressão liderada por um senador paraibano, grande senhor de terras incultas, Argemiro Figueiredo.

Com Jânio Quadros agravou-se a questão do “barril de pólvora vermelho” instalado no nordeste. Para conter manifestações estudantis e operárias, Jânio chegou a enviar ao Recife tropas dos Fuzileiros Navais. Mas, não extinguiu a SUDENE.

Com o golpe de 1964 ativaram-se as campanhas contra a SUDENE. Celso Furtado, preso, e depois exilado, assistiu de longe a desconstrução de quase toda a equipe técnica que montara. O cearense Castello Branco, o primeiro dos generais presidentes, ativou a “caça aos comunistas” mas, preservou a estrutura da SUDENE, que aliás ganharia força, prestígio e poder, sob o comando do general Euler Bentes Monteiro, colocado no cargo pelo general Albuquerque Lima, Ministro do Interior, um inconformado com o subdesenvolvimento nordestino e brasileiro.

Mesmo naquele tempo, pós-revolução de 64, a racionalidade era esforçadamente preservada, e havia uma visão de Estado defendida pelos militares e civis egressos da Escola Superior de Guerra, que, apesar de nos atrelar inteiramente a um campo do conflito dividindo o mundo, era uma bússola norteadora para o desenvolvimento nacional, e, nos estamentos burocráticos, buscava alcançar um consenso que dava mais fluidez às ações. Os generais-presidentes não cometiam erros em decorrência da imposição de suas ideias, muito menos dos seus preconceitos. Buscava-se, de certa forma, um projeto com alguma dose variável de conciliação, embora fossem espalhados adesivos com a inscrição belicosa e de extremo mau gosto: “Brasil Ame-o  ou Deixe-o”.

No caso do nordeste, ao invés de discriminar a região, de castigá-la por ter sido palco de lutas sociais intensas, os presidentes do ciclo militar trataram-na com equidade, e não são poucas as obras que aqui foram feitas, inclusive via SUDENE. Citaríamos só algumas em Sergipe: a FAFEN, (agora ainda “hibernando”), o Porto Oceânico, o asfaltamento completo da BR-101; mais de 70 mil casas populares construídas, a Mina de Potássio Taquari-Vassouras, a instalação da sede regional da PETROBRAS em Aracaju, (que agora será extinta) o TECARMO, na Atalaia, a ampliação dos campos de petróleo em terra, e o inicio da produção no mar, e o velho e nunca antes realizado sonho nosso: a Universidade Federal de Sergipe.

Em 1974, o partido governista Aliança Renovadora Nacional, ARENA, em eleições realizadas com líderes da oposição cassados, e rigorosa presença dos órgãos de segurança, amargou uma acachapante derrota. Quase todos os senadores eleitos eram da oposição consentida, representada pelo MDB. Gilvan Rocha, um médico e intelectual sem expressão eleitoral, derrotou o maior líder político de Sergipe, Leandro Maciel. No nordeste a derrota foi ainda mais fragorosa.

Não se conhece uma só palavra de recriminação de nenhum dos generais-presidentes, ou de algum dos seus ministros contra a região nordestina, nem qualquer ofensa a líderes nordestinos. Não se conhece uma só retaliação de natureza administrativa contra o nordeste.  O clima evidentemente não era doce, mas, todos os presidentes demonstravam equilíbrio, respeito litúrgico aos cargos, comedimento, noção de responsabilidade em relação ao país como um todo.

Se acontecesse, na época, algo parecido com o banho sujo de óleo que sofremos, com certeza qualquer um dos cinco generais-presidentes viria, acompanhado dos seus ministros, visitar e solidarizar-se  com a região, demonstrando liderança, proatividade, e o  sentimento responsável de um Chefe de Estado.

No nordeste brasileiro, por falta de um sistema eficiente de saneamento básico, tivemos, faz pouco tempo, uma epidemia do cólera, que matou muita gente, pobre, sem dúvidas, pisando e bebendo água  repleta de  merda.

Agora, o que nos causa temor é a epidemia que espalha a cólera pelo ambiente político, e nos faz vítimas de uma insensatez cada vez mais ululante no centro da República.

Desgraçadamente, a cólera contra o nordeste crescerá, mais ainda agora, na medida exata em que Luiz Inácio Lula da Silva, continuar a reunir em torno dele multidões para um exercício inútil de política pessoal, partidária, engrossando um conflito irracional onde nos metemos: Bolsonarismo X Lulismo.

Esse tipo de cólera é bem mais devastador. Não chega ainda a matar, mas, nos distancia da visão humanizadora que deveria prevalecer no país. O nordeste não deve ser área onde alguns acendem a fogueira e outros chegam para abanar o fogo.

Temos desafios enormes a vencer, e isso somente se conseguirá com modernização e desenvolvimento.

Nesse sentido, a iniciativa dos nove governadores criando o Consórcio do Nordeste, começa a gerar resultados positivos. A viagem que eles agora realizam a países europeus, sem dúvidas é uma boa iniciativa. O Consórcio Nordeste, pode ser visto, até, como um sucedâneo da SUDENE, o Colegiado que unia a região e também  ampliava a intensidade da sua voz para ecoar melhor em Brasília.

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