Luiz Eduardo Costa
Luiz Eduardo Costa, é jornalista, escritor, ambientalista, membro da Academia Sergipana de Letras e da Academia Maçônica de Letras e Ciências.
TEXTOS ANTIVIRAIS (23)
14/07/2020
TEXTOS ANTIVIRAIS (23)

NAS SERRANIAS DE ITABAIANA VOAM OS FALCÕES DE PERCÍLIO

(Percílio, o nosso São Francisco cercado dos seus pássaros precisa de ajuda)

Nesses tempos carrancudos de pandemia desembestada pelo mundo todo, surgem observações específicas, pontuais, sobre como funcionam diversas coisas que fazem parte do nosso cotidiano. Coisas que parecem firmes, consolidadas, e de repente se revelaram tão frágeis, quando tudo parou, quando as pessoas aconchegaram-se aos seus recantos, buscando a solidão que protege. Nem nos dávamos conta, por exemplo, de quanto custa manter um Jardim Zoológico. Aliás, chamar de Jardim aquele confinamento de enjaulados bichos, soa como um despropósito.

Nos Estados Unidos calcularam quanto custam os oitocentos mil viventes amontoados naqueles “Jardins” sem flores, e que até cheiram mal, e concluíram que, em face da pandemia, poderiam faltar dólares para comprar a variadíssima dieta que os alimenta, e pagar os salários dos seus cuidadores. Ou seriam tratadores?

O pensamento ecológico começa a fazer questionamentos sobre esses “jardins”. Serviriam mesmo para encher cofres, ou para o macaco fazer rir crianças enquanto trocam caretas; ou teriam, efetivamente, algum valor para estudos científicos?

Parece que diante dessa pergunta ainda não respondida, cresce a ideia de que sem nenhuma dúvida a melhor forma de manter a diversidade da fauna, seria preservando os seus habitats naturais, ou em amplas áreas de reserva, como se faz agora, principalmente na África.

Então, dentro dessa concepção nova, nas vertentes das serranias de Itabaiana, surgiu uma área onde um cara, Percílio, discípulo de São Francisco, acomodou o primeiro gavião que estava ferido, tratou dele, e o curou, então, foram surgindo outros, e agora existe o Parque dos Falcões da Serra de Itabaiana. Ele é contíguo ao Parque Nacional da Serra de Itabaiana, onde há florestas, e até espécies raras, as coníferas, que a geógrafa Lílian Wanderley identificou nas suas escaladas pelos espinhaços mais elevados.

Nos antecipamos assim ao que resultará do debate sobre os Jardins Zoológicos. Percílio e aqueles que o ajudam, respeitam a liberdade dos bichos. Todos vão, voltam, flanam despreocupados, aproveitando as correntes ascendentes das fraldas da serra; fazem o prodígio do voo livre no seu mais alto nível de perfeição. Mas se alimentam, e custam caro. Agora, quando não chegam mais turistas, o Parque dos Falcões esteve, ou ainda está ameaçado. Percílio desesperou-se. Não podia abandonar as suas aves, que com ele convivem, a ele obedecem, e o têm como insubstituível protetor.

No Brasil, tantas coisas nos faltam, a começar pelo bom senso, a sensatez, até uma parte do sentimento cordial e humano se desfaz, mas a solidariedade subsiste, cresceu até, nesses dias aziagos, quando a morte nos ronda e vai abatendo tanta gente desconhecida, pelas quais rezamos e ficamos tristes, e por outras gentes mais próximas, que desaparecem, que amávamos, e pelas quais choramos, e nos enlutamos.

Quando cada por do sol parece ser o último, o cenário fantástico nessa incerteza, a decorar provavelmente o fecho da existência, o que retempera é a ânsia de viver, e fazer o que for possível pela vida, a nossa, a dos outros, pela sobrevivência da nossa casa, a terra, que deverá continuar sendo a morada única de todos os que ficam, ou ainda virão. A casa de gente, a casa de bichos, a casa das árvores.

Pois o Parque dos Falcões de Percílio, é uma parte especial e simbólica dessa casa, onde persiste a fraternidade, o amor e a esperança. É preciso que ela continue a cumprir suas tarefas.

Há no Brasil uma entidade que cuida das peregrinações, programa os eventos, organiza os deslocamentos, cuida de toda a logística, e, mais anda: procura manter o espírito peregrino que consubstancia a fé. O dirigente da entidade é um sergipano, o engenheiro Ancelmo Rocha. Ele mora em Salvador, mas aqui tantas vezes vem, e estava organizando uma peregrinação permanente aos locais por onde andou Santa Dulce. Itabaiana seria um deles, e será, assim que se for esta trágica onda de vidas ceifadas.

Ancelmo conheceu o Parque dos Falcões, e lá viu de perto o Falcão Peregrino, ave veloz, incorrigível voadeira, que percorre milhares de quilômetros, e anualmente faz a sua peregrinação em busca do nosso sol e calor, quando no norte dos Estados Unidos, e em todo o Canadá os campos se cobrem de neve.

Ancelmo juntou-se à advogada Telma Oliveira Jabolsky, que vive no Rio de Janeiro. Os dois organizaram uma rede de ajuda ao Parque dos Falcões, e é preciso manter viva essa corrente.

Telma é também sergipana, nasceu em Frei Paulo. Viveu em Aracaju até os dezessete anos, formou-se em Ilhéus, e foi morar no Rio de Janeiro, onde casou e tem filhos. Feições suaves, porte elegante, era, nos anos cinquenta, quase uma sósia da atriz Audrey Hepburn. Telma, é recordista brasileira de peregrinações. Ancelmo e ela estão organizando o X Encontro Nacional de Peregrinos, o ENAP que será realizado em Aracaju, de 17 a 21 de abril do próximo ano. Então, confiemos que até lá já exista uma vacina para o vírus, e o Parque dos Falcões esteja salvo e em atividade.

Mas Percílio continua precisando da ajuda de todos.

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DE UNAMUNO NA ESPANHA AO REITOR ANTONIOLI NA UFS

(O Reitor Antonioli, variados comportamentos a depender das circunstâncias)

Nesses tempos em que um tropel de insensatez ameaça o sistema educacional brasileiro, e tem foco principal na Universidade Pública, há um exemplo de dignidade, ao qual vez por outra aqui aludimos.

Começava a tragédia da Guerra Civil Espanhola. O filósofo e escritor Miguel Unamuno, era Reitor da Universidade de Salamanca. Ele até acompanhava com simpatia o avanço das tropas fascistas do general Francisco Franco. Numa data comemorativa, Unamuno fazia uma solene conferência no auditório principal da Universidade, que nascera na Idade Média. De repente, o interrompe o general franquista Milan Astray. De arma em punho zurra furioso: “Abaixo a cultura viva a morte”.

Astray era um mutilado das guerras coloniais que participou. Faltavam-lhe um braço, metade de uma perna, só tinha um olho, e ainda estava em combate. Para uns, tratava-se de um herói da pátria, para outros, a figura de um extremista tragicômico.

Unamuno retoma a palavra, e em voz pausada e enérgica diz: “General aqui é um templo sagrado da cultura, e o senhor abrupta e grosseiramente o invade e conspurca com sua presença intolerante e indesejada. O senhor é um aleijado físico e mais ainda moral, que se ampara nas armas e despreza o conhecimento e a racionalidade”. Unamuno foi preso, depois, seria executado.

Não se esperaria do reitor da UFS Ângelo Antonioli nenhum gesto parecido, até mesmo porque, de Unamuno o separa uma imensa distância, que se mede através daqueles sentimentos formatadores do conceito de humanismo; e também porque nenhum general invadiu, nem invadirá, os recintos da UFS, gritando coisas tão bárbaras.

Antonioli, contudo, nas circunstancias estranhas que agora cercam a escolha do futuro Reitor, renegou seus princípios, alterou sua conduta democrática, e parece agir em consonância com uma camarilha de doutores que esperavam uma nomeação biônica pelo malogrado obscurantista, o ex-Ministro Weintraub. Essa camarilha, além de retrógrada, caracteriza-se pela bajulação sebosa, que motivou o ignóbil manifesto de apoio dirigido ao tresloucado inquisidor Weintraub.

Antonioli quer suprimir a eleição livre e direta, com a participação de todos os que integram a Universidade. A forma de eleição pela qual ele próprio foi escolhido Reitor. Teria feito por sinal um excelente trabalho, não fosse o vício que o contaminou de achegar-se ao poder, mesmo que à custa de renúncias aéticas, e de desfigurações da própria personalidade.

Há um movimento de repúdio na UFS, há uma tendência de desprezo às inclinações autoritárias, e principalmente a outras inclinações acovardadas, que se caracterizam pela curvatura deprimente da espinha.

Nessa onda de repúdio , de decepções, e também de resistência, parece ganhar corpo a chapa à reitoria liderada pelos professores André Mauricio e Rozana Rivas, que apresentam uma plataforma inovadora e democrática.

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AH! ELE É UM POETA......

(Amaral, o poeta que transitou entre o sonho  e a realidade)

Diante de alguém envolvido com a poesia, as pessoas por vezes dizem: “Ah, é um poeta. Não se pense que a expressão traduza sempre a reverência, poderá ser, também, o extravasar de algum desprezo.

Contava o poeta Amaral Cavalcanti que, muito jovem, recém chegado de Simão Dias para Aracaju, tentando um emprego, indo apresentar-se a um comerciante ao qual fora recomendado, ouviu a expressão: “Ah, você é poeta”. Empertigou-se, entusiasmado, imaginando que a credencial literária lhe garantira o emprego, mas, foi logo surpreendido pelo restante da frase: “Não me serve, eu quero gente que tenha responsabilidade, essa coisa de poesia atrapalha”.

Amaral absorveu o choque e saiu dali muito mais sonhador do que quando entrara, e acrescentou ao seu universo poético a decisão firme de tornar-se um militante cultural; fazer frente a todos os tipos de preconceito, seja daquele almocreve por trás de um balcão, ou vários outros, maiores, descomunais, as cracas malfazejas nas cabeças do sentir coletivo.

Em pouco tempo já tinha emprego no Diário de Aracaju, o último jornal instalado pelos Associados, grupo gigante de comunicação criado por Assis Chateaubriand, um chantagista virtuoso. O Grupo desapareceu, depois de doado por Chatô a chantagistas, nada virtuosos.

O poeta Amaral lidava com finanças, e Odorico Tavares, jornalista, intelectual e mecenas, que comandava os Associados na Bahia e Sergipe, logo descobriu que ele poderia escrever uma coluna cultural, transitando entre o escritório e a redação.

Amaral Cavalcanti ali encontrava-se com o seu destino. Foi sempre poeta, embora bissexto, por tantas e tão intensas atividades que foi abarcando, sempre na linha da militância cultural. Rebelde, com ou sem causas, e basicamente sem elas, Amaral foi um acendedor de lampiões, tentando, como sempre dizia, clarear os desvãos da “caretice”. E fez isso como jornalista e editor, ao lançar, à sombra sempre ameaçadora do autoritarismo, o nosso pasquim mal comportado, a Folha da Praia. Ao contrário do afrontoso vaticínio do comerciante rabugento sobre a poesia que o atrapalharia, Amaral foi sempre poeta e sempre concretizou seus projetos na área da cultura; os dele mesmo, e aqueles que desenvolveu como agente público.

A revista Cumbuca, exitosa publicação cultural patrocinada pelo governo de Sergipe, foi a última realização do poeta proativo.

O discurso de Amaral Cavalcanti ao ingressar na Academia Sergipana de Letras é um documento que merece transito ao futuro, uma tessitura literária que abrange um tempo de vida e de circunstancias. Um tempo em que as agonias existenciais tentavam aquietar-se no espaço conquistado pela audácia de transgredir. Amaral, poeta, intelectual, conseguiu percorrer os caminhos da contestação ao tempo em que o seu riso pacificador suavizava a jornada.

No discurso de posse ele teve a sutileza de revelar o amor ao seu príncipe de ébano, Erê, sempre protegidos, os dois, pela cumplicidade de todos os orixás.

Costumamos fazer homenagens aos que se despediram da vida, algumas, provavelmente imerecidas, mas é preciso, agora, alcançar a dimensão dos vastos merecimentos de Amaral Cavalcanti, e assim, Sergipe, o governo de Sergipe, as Prefeituras de Aracaju e Simão Dias, possam cuidar bem, para fazer a ele a homenagem maior que seria perenizar a obra, e nela a alma do homem, que, entre outras coisas, também foi primoroso fazedor de coisas.

 

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